
Grandes feitos: 4ª Colocada na Copa do Mundo da FIFA de 1998 e 3ª colocada na Eurocopa de 2000.
Time-base: Van der Sar; Reiziger (Bogarde / Bosvelt), Stam, Frank de Boer e Numan (Zenden / Van Bronckhorst); Ronald de Boer (Overmars), Jonk (Seedorf), Davids (Aron Winter) e Cocu; Bergkamp (Hasselbaink / Van Hooijdonk) e Kluivert. Técnicos: Guus Hiddink (1998) e Frank Rijkaard (1998-2000).
“Aconteceu de novo…”
Copa de 1974. A melhor Holanda de todos os tempos encanta o mundo com o Futebol Total. Um a um, os adversários são batidos sem dó, com toques de crueldade, até a grande final. Nela, a Holanda sai na frente do placar, mas leva a virada da anfitriã Alemanha, que conquista o título. Copa de 1990. Dois anos depois de ser campeã da Europa com uma geração brilhante de craques como Koeman, Rijkaard, Gullit e Van Basten (leia mais clicando aqui!), a Holanda chega à Itália como uma das candidatas ao título. Mas o rendimento é pífio, para não dizer trágico. Três empates na primeira fase. E eliminação logo nas oitavas de final para, adivinhe, a Alemanha, que viria a ser campeã. Copa de 1994. Com uma nova leva de talentos surgindo, a Holanda se classifica em primeiro em seu grupo e elimina a Irlanda nas oitavas de final. Nas quartas, num jogaço contra o Brasil, os laranjas perdem por 3 a 2 e dão adeus ao Mundial. Quatro anos depois, a Holanda chega em mais uma Copa como favorita. Dessa vez, sem exageros. Com um time fortíssimo e a maior geração de craques desde 1974, a equipe comandada por Guus Hiddink parecia ter lugar certo naquela competição: o Stade de France, em Saint-Denis, na grande final do dia 12 de julho. Mas… É, sempre tem o “mas” quando falamos da Holanda em Copas… Teve o Brasil na semifinal. Teve penalidades. E teve Taffarel. Na marca da cal, a Holanda caiu num jogo histórico, com contornos cinematográficos. Aquela poderia ser a final antecipada. Mas… Não foi. Até hoje, os franceses dizem que se tivessem enfrentado aquela Holanda na final teriam sérios problemas. E eles tinham razão. Basta olhar a escalação daquela equipe. Um ótimo goleiro (Van der Sar). Uma zaga irrepreensível (Stam e Frank de Boer). Laterais seguros (Bogarde, Numan, Reiziger e, depois, um novato Van Bronckhorst). Um meio de campo sem adjetivos suficientes para qualificá-lo e com uma quantidade de opções de dar inveja a qualquer seleção do mundo (Davids, Ronald de Boer, Cocu, Jonk, Seedorf…). E um ataque dos sonhos, com goleadores natos, artísticos, devastadores (Bergkamp e Kluivert), com opções de qualidade à espreita (Hasselbaink, Van Hooijdonk, Overmars…). Dois anos depois, aquela mesma geração disputou em casa a Eurocopa. E, de novo, os pênaltis foram inimigos. De novo na semifinal. Foi uma judiação. Mais uma leva de craques vestindo laranja sem uma só medalha no peito. Um troféu sequer. Aconteceu de novo. Mas, de novo, eles foram entretenimento puro, arte pura, para enriquecer ainda mais a história do futebol. É hora de relembrar.
A SAFRA DE OURO

Após o título da Euro de 1988 e a decepção na Copa de 1990, a Holanda passou por mudanças a fim de recuperar o prestígio que havia perdido na Itália e acabar de vez com desavenças no elenco – um dos pontos que prejudicaram o desempenho no Mundial italiano. A Federação trouxe para o comando técnico Dick Advocaat, em 1992, que tratou de reorganizar o elenco para a classificação e disputa da Copa de 1994. Dito e feito. Embora não pudesse contar com Van Basten, contundido, o treinador levou para os EUA uma mescla de veteranos com promessas, entre elas os irmãos De Boer, o lateral Numan, o goleiro Van der Sar e os atacantes Overmars e Bergkamp. O desempenho da Holanda no Mundial foi bom. Na primeira fase, classificação em primeiro lugar do grupo, à frente de Arábia Saudita, Bélgica e Marrocos. Nas oitavas, triunfo por 2 a 0 sobre a Irlanda. Mas, nas quartas, o revés por 3 a 2 para o Brasil, mesmo com uma grande reação quando a equipe empatou após estar perdendo por 2 a 0, ruiu o sonho de um possível título.
No começo de 1995, a Federação Holandesa decidiu mudar novamente o comando técnico e trouxe Guus Hiddink, treinador que havia feito história no final dos anos 80 ao empilhar taças com o PSV, incluindo um Treble na temporada 1987-1988 (leia mais clicando aqui). Hiddink iniciou uma renovação tomando como base um esquadrão holandês que encantava a Europa e o mundo na época: o Ajax. Exatamente em 1995, o clube de Amsterdã levantou a Liga dos Campeões da UEFA com uma equipe fantástica, jovem e que fez o torcedor relembrar, em partes, o timaço lá dos anos 70. Entre os destaques, estavam os já citados irmãos De Boer, Van der Sar e Overmars, os meio-campistas Davids e Seedorf, o atacante Kluivert e os defensores Reiziger e Bogarde. Além de toda aquela safra alvirrubra, Hiddink ainda tinha à sua disposição Bergkamp, jogando tudo e mais um pouco no Arsenal, o zagueiro Stam e o polivalente Cocu, ambos do PSV. Não havia dúvidas: aquela era a melhor safra de talentos surgidos na Holanda desde os anos 70. Superava até mesmo a campeã da Europa em quantidade de bons jogadores para cada posição. Mas era preciso treino e entrosamento para aquele time dar liga. O primeiro desafio seria a Eurocopa de 1996, na Inglaterra. Nas Eliminatórias, a equipe se classificou com seis vitórias, dois empates e duas derrotas em 10 jogos, com 23 gols marcados e apenas cinco sofridos. No entanto, as esperanças laranjas na Euro iriam ruir por causa dos problemas salariais entre jovens e veteranos no Ajax (base da Laranja) levado ao cotidiano da seleção e do caso conhecido como “De Kabel” (algo como “a linha”, em holandês).

Como muitos atletas daquela safra eram nascidos ou descendentes de surinameses (Reiziger, Davids, Kluivert, Seedorf e Bogarde), havia, segundo a imprensa, uma suposta rixa entre eles e os holandeses “da gema”. No Ajax, Bogarde, quando levantou a taça europeia de 1995, chegou até mesmo a dizer “é para você, Suriname!”. O termo “De Kabel” surgiu após uma entrevista de Davids, Kluivert e Seedorf logo após a classificação para a Eurocopa de 1996, na vitória sobre a Irlanda. Durante o bate-papo para a NOS, empresa pública de TV da Holanda, os jogadores se sentaram lado a lado e surgiu o termo “kabel”. Orgulhosos de si e da atuação no jogo contra os irlandeses, a expressão serviu para apelidar aquela amizade e o suposto racha, que ficou exemplificado em uma foto tirada pelo holandês Guus Dubbelman, com uma suposta divisão entre brancos e negros num almoço da seleção – suposta, pois Witschge estava na mesa com Davids, Bogarde e companhia. A foto foi muito criticada por Hiddink e pelos jogadores por expor uma briga que não existia. Kluivert, em sua biografia, disse:
“Fiquei muito irritado. Se o dono da câmera prestasse atenção, teria notado que no dia anterior eu tomara o café da manhã me sentando com Van der Sar, Frank de Boer e Blind. E almoçara com Jordi Cruyff, Peter Hoekstra e Youri Mulder. Colocaram uma bomba no ambiente da Oranje, e não tinha nada a ver com a realidade.” – Patrick Kluivert, em trecho de sua biografia e reproduzido no site Trivela, 17 de junho de 2016.

O que aconteceu foi uma demonstração de orgulho de três jogadores de ascendência surinamesa após uma grande classificação. Como não poderia deixar de ser, a participação da Holanda na Euro foi péssima. A equipe levou de 4 a 1 da Inglaterra, Davids brigou com Hiddink e foi cortado, o time até se classificou para a segunda fase, mas caiu nos pênaltis para a França após empate sem gols em 120 minutos. Era preciso apagar de vez aquela chama da discórdia que pairava sobre os laranjas. Ou, se continuasse, ela iria transformar em cinzas uma safra que tinha grandes chances de fazer bonito na Copa do Mundo de 1998.
O PACTO E AS MUDANÇAS
Koeman e Hiddink. Foto: APhez com que o técnico Hiddink instituísse uma cartilha de normas de comportamento para todos os jogadores com relação à imprensa e à torcida. Aquilo, somado à vontade dos atletas em viver de uma vez por todas em harmonia, mudou a maneira de atuar daquela Holanda. Guus Hiddink também mudaria seu jeito de comandar o time. Ele seria mais rígido e de difícil acesso, para ter o controle sobre o que acontecia dentro e fora de campo. Blindados, os jogadores passaram a encarar a seleção com seriedade e todos amadureceram bastante. Em outubro de 1996, a caminhada das Eliminatórias para a Copa de 1998 começou com uma vitória por 3 a 1 sobre País de Gales, em Cardiff. Em seguida, novo triunfo sobre os galeses, agora com show: 7 a 1, com três de Bergkamp, um de Ronald de Boer, um de Frank de Boer, um de Jonk e um de Cocu. Para encerrar um ano conturbado, goleada de 3 a 0 sobre a rival Bélgica, em Bruxelas, num triunfo que foi tido como um presente de Natal antecipado para a torcida e a esperança de tempos melhores.
Em fevereiro de 1997, a Holanda encarou a França, em amistoso realizado em Paris, e perdeu por 2 a 1, mas deu um trabalho danado para os futuros anfitriões da Copa. Um mês depois, de volta às Eliminatórias, a equipe laranja venceu San Marino por 4 a 0, perdeu para a Turquia, fora, por 1 a 0, goleou mais uma vez San Marino (6 a 0), bateu a Bélgica, em casa, por 3 a 1, e empatou sem gols com a Turquia. No meio do caminho, eles tiveram tempo para vencer um amistoso com a África do Sul por 2 a 0, fora de casa. Com seis vitórias, um empate e uma derrota em oito jogos, além de 26 gols marcados e apenas quatro sofridos, a Holanda estava na Copa. E unida como há muito tempo não se via.
O TIME DESEJADO
Mais do que um bom papel em campo, a Holanda mostrava união e organização fora dele. A Federação levou para a comissão técnica três lendas do esporte do país para auxiliar Hiddink: Johan Neeskens, da mágica Holanda de 1974, seria o auxiliar tático. Ronald Koeman, que havia pendurado as chuteiras recentemente, seria o responsável pelos treinos da zaga, e Frank Rijkaard, a prova de que não havia conflito étnico no grupo e apto a oferecer preciosos conhecimentos táticos e de campo. Com esse trio, o grupo holandês estava praticamente pronto para o Mundial. Mas faltava uma pessoa: Edgar Davids, ausente da equipe desde as brigas na Eurocopa de 1996. Mas o meio-campista foi chamado para os duelos preparativos de 1998 por motivos óbvios: ele estava jogando muito, mas muito na Juventus. Seria um sacrilégio não convocá-lo. Ele nem ligou de não participar das Eliminatórias, mas claro que queria ir para o Mundial. E foi. Nos primeiros meses do ano, a Holanda ainda não teve o baixinho nos amistosos contra EUA e México – vencidos por 2 a 0 e 3 a 2, este com três de Kluivert -, mas Davids voltou em 27 de maio, no empate sem gols contra Camarões, e também nas goleadas sobre Paraguai (5 a 1, em Amsterdã, de virada e mesmo contra uma grande equipe paraguaia com Chilavert, Gamarra, Rivarola e Arce) e Nigéria (5 a 1).
As atuações pré-Copa encheram a torcida e a imprensa de expectativas positivas. No gol, Van der Sar era talentosíssimo, seguro com as mãos, eficiente com os pés, de reflexos apurados. A zaga levava pouquíssimos gols graças ao talento extraordinário de Frank de Boer, já citado aqui no Imortais como um “camisa 10 na zaga”, e Jaap Stam, que crescia a cada jogo como um dos grandes defensores do futebol mundial. No meio de campo, talentos por todos os cantos: Jonk, Ronald de Boer, Seedorf, Davids, Cocu, o veterano Winter… E, no ataque, o “homem de gelo” Bergkamp, o rápido Overmars, Van Hooijdonk e sua boa fase, o sempre perigoso Hasselbaink, e o atacante Kluivert, que, embora vivesse má fase no Milan, parecia voar quando vestia a camisa laranja, principalmente nas bolas aéreas, sua especialidade. Enfim, era um timaço e um grande elenco, que foi se concentrar perto de Mônaco quando chegou à França, lugar perfeito para manter a tranquilidade e blindar aqueles atletas das “intempéries da imprensa”. Sob um clima agradável, era só esperar a Copa começar. E mostrar ao mundo do que aquele time era capaz.
APÓS O HIATO, GOLS

A estreia da Holanda na Copa foi justamente no palco da final: o Stade de France. Mais de 75 mil pessoas estavam lá para ver o clássico dos laranjas contra a Bélgica. Com um esquema diferente do habitual 4-3-3, o time de Hiddink sufocou os belgas, mas o gol teimou em não sair. Hasselbaink ainda perdeu um gol incrível e o time pecou demais nas finalizações. Com isso, o placar ficou mesmo em 0 a 0 e acendeu o alerta com relação ao poder de fogo daquela equipe. Pior: Kluivert levou cartão vermelho e desfalcaria o time nos próximos jogos. Mas tal sinal foi logo dissipado contra a Coreia do Sul: goleada por 5 a 0, com gols de Cocu, Overmars, Bergkamp (um golaço), Van Hooijdonk e Ronald de Boer. No último jogo do grupo, a equipe dominou o México durante quase toda a partida, abriu 2 a 0 com Cocu e Ronald de Boer, mas recuou na segunda etapa e viu o rival – que precisava de pelo menos um empate -, chegar aos 2 a 2, resultado que classificou as duas equipes para as oitavas de final.
A Holanda terminou em primeiro lugar no grupo e provou ter uma qualidade técnica exuberante, mas certa ineficácia em alguns momentos na hora da conclusão de jogadas, ou mesmo no recuo desnecessário quando estava vencendo o México. No mata-mata, aqueles erros não poderiam se repetir.
UMA HOLANDA DE ENCANTO

Nas oitavas de final, em Toulouse, a equipe de Hiddink teve pela frente um adversário perigoso: a Iugoslávia, de Mijatovic, Mihajlovic, Jugovic, Stojkovic e ainda Savicevic, no banco. Era uma equipe também técnica e com muito poder de fogo em contra-ataques. Mas a Holanda dominou o primeiro tempo, fez 1 a 0 com Bergkamp e poderia ter feito ainda mais gols. Seedorf e Davids estavam juntos no meio de campo e deram mais mobilidade para o ataque, que tocava a bola de pé em pé e chegava com muita facilidade na área iugoslava. No começo da segunda etapa, a Iugoslávia acordou e chegou ao empate. Minutos depois, Mijatovic bateu um pênalti, mas a bola bateu na trave. Aquela Holanda, enfim, também provava ter sorte! O não-gol rival inflou os laranjas, que voltaram a ser mais assíduos na frente e chegaram à vitória com um gol de Davids, aos 47’, um prêmio a um dos melhores jogadores daquele time e tão fundamental para o esquema de jogo de Hiddink.

No duelo seguinte, um dos jogos mais aguardados aconteceu: Holanda e Argentina, reedição da final da Copa de 1978 exatos 20 anos depois. Não era uma revanche pois não se tratava da decisão, mas é claro que os holandeses entraram um pouco mais entusiasmados para aquela partida. A Argentina vinha de um duelo histórico contra a Inglaterra decidido apenas nos pênaltis como você já relembrou aqui no Imortais e era um grande time, com Ortega, Batistuta – então artilheiro da Copa – Simeone, Zanetti, Almeyda… Seria um jogaço! E, com sua escalação mais clássica daquela Copa e a volta de Kluivert, a Holanda nutria as melhores expectativas.

Assim como nas outras partidas, a Holanda foi para a sua tática do sufocamento: time no ataque, jogadas incisivas, tentativas de gol até balançar as redes rivais. Aos 4’, Jonk, num de seus habituais petardos de fora da área, mandou uma bola na trave de Roa. E, aos 12’, em ótima jogada do ataque laranja, Kluivert invadiu a área e fez o primeiro gol. Insaciável, a equipe seguiu no ataque, mas tanto apetite custou caro: em uma linha de impedimento mal feita, Claudio López ficou cara a cara com Van der Sar e empatou: 1 a 1. O jogo era bastante equilibrado. A Holanda, no ataque, com tabelinhas, toques de primeira, dribles e os habituais lançamentos longos de Frank de Boer. A Argentina, apostando no contragolpe, recuada. Davids, em uma arrancada fulminante do meio de campo, entrou na área e quase marcou um gol antológico, e, pouco depois, arriscou de longe para a bola defesa de Roa. No segundo tempo, Batistuta ia fazer um golaço após lançamento de Verón, mas acertou a trave de Van der Sar. O jogo seguiu com fortes emoções até os 31’, quando Numan acertou um carrinho em Simeone e foi expulso. Será que a Holanda iria sucumbir diante da Argentina como em 1978? Não. Aos 42’, Ortega levou um cartão amarelo por simular um pênalti. Quando foi levantar, acertou o nariz de Van der Sar (na verdade, ele fingiu…) e o juiz viu. Vermelho para o camisa 10. E igualdade numérica também de jogadores.
O tempo ia ficando cada vez mais escasso em Marselha. A Holanda já temia uma prorrogação. Muito mais, os pênaltis, sempre indigestos para os holandeses em competições oficiais. Até que, no último minuto, aconteceu um daqueles momentos que não cabem palavras suficientes. Momentos que são definidos pela genialidade de seus envolvidos, pelos astros do futebol, pelas camisas. Pela alma. Sim, o futebol tem alma. Seleções em Copas têm alma. E, naquele último minuto de jogo, a Holanda mostrou a sua. Frank de Boer, o camisa 10 na zaga, o zagueiro que fazia lançamentos que centenas de meias no mundo inteiro não tinham noção nem capacidade alguma de fazer, conduziu a bola com calma, sutileza, maestria. Ele levantou a cabeça. Viu Dennis Bergkamp lá na área argentina. Só Bergkamp. E mais três argentinos à espreita, sem contar o goleiro. Mesmo assim, De Boer lançou. Perfeitamente. A bola voou. Bergkamp, que tinha medo de voar, esperou ela ficar à meia altura o suficiente para ele dominar com um toque. Com outro toque, cortou Ayala passando a bola por entre suas pernas. Com mais um toque, mandou a bola para o gol de Roa. Uma obra de arte. Um golaço. Um dos gols mais bonitos da história das Copas do Mundo em todos os tempos. Um gol de classificação para a semifinal. O gol que sepultou a Argentina, o antigo algoz de 20 anos atrás. O gol mais importante da carreira de Bergkamp segundo o próprio. A Holanda estava entre os quatro melhores. A torcida estava do lado dela. Dava gosto ver aquele time jogar. Como era um privilégio ver tantos craques com uma só camisa. Faltavam apenas dois degraus para o sonho de uma taça que teimava em escapar.
A DOR NA MARCA DO PENALTI
Três dias depois do jogaço contra a Argentina, a Holanda estava de volta à Marselha. Ao mesmo Vélodrome. Para enfrentar outro time sul-americano. Mas dessa vez “o” time sul-americano do momento, então campeão mundial, então com o melhor jogador do mundo (leia-se Ronaldo): o Brasil. Quis o destino que duas seleções artísticas, de futebol envolvente, de passes e dribles, cujas essências moravam na arte técnica e tática, tivessem que se encontrar antes da final. Quatro anos depois do duelo eletrizante no calor dos EUA, em 1994. Naquele dia 07 de julho, o céu estava limpo. A temperatura, amena. A torcida, pulsante. Verde e amarelos de um lado. Laranjas do outro. Arquibancadas lindas. Pela primeira – e única – vez em Copas, Brasil e Holanda iriam vestir seus uniformes principais num jogo entre si. Aquilo era simbolismo. Prenúncio. O que se viu em Marselha foi o maior e melhor jogo da Copa do Mundo de 1998. Um jogo que poderia ter sido a final. Um jogo absurdamente tenso. Energético. Depois de um primeiro tempo apenas morno, o segundo começou com um gol de Ronaldo. E um bombardeio holandês pra cima de Taffarel. A bola aérea e a defesa eram os pontos fracos do Brasil. A Holanda e Guus Hiddink sabiam disso. E eles investiram nisso. Ganharam todas. Mas o gol não queria sair. Só saiu no finalzinho. Com o especialista em cabeçadas entre os 22 jogadores em campo naquele dia: Kluivert, sozinho, único, que testou sem chance alguma para o camisa 1 brasileiro.
Após um empate em 1 a 1 no tempo normal, teve prorrogação com morte súbita. E mais futebol arte. Nada de medo. Nada de retranca. Nada de times covardes com toquinho pro lado esperando a decisão por pênaltis. Teve coragem. Times no ataque. Bola raspando a trave. Enfim, teve futebol. Eram outros tempos, caro leitor (a). Mas o empate persistiu. E chegou tudo o que a Holanda não queria: a disputa de pênaltis. Justo eles. Justo o tipo de disputa que aquela equipe não tinha sorte. Em 1992, na Euro, derrota para a Dinamarca. Em 1996, também na Euro, para a França. E em 1998, para o Brasil. Foi 4 a 2. Taffarel, com um talento quase obsceno para pegar pênaltis, pegou dois. De Cocu e Ronald de Boer. E o Brasil foi para final, perdida para a França, que temia demais o futebol laranja. Um futebol que quase não tinha pontos fracos. A Holanda terminava seu sexto jogo sem perder. Foi um baque. Mas um baque de cabeça erguida. Foi um jogo tão apaixonante, tão espetacular, que aqui não há espaço suficiente para ele.
Melhores momentos
Devastados, os holandeses ainda tinham que disputar o terceiro lugar, com a Croácia de Suker. Com a cabeça longe, eles perderam por 2 a 1. Mas quase ninguém se lembra disso na Holanda. A partida que eles queriam e focaram já havia passado. Eles estiveram muito, mas muito perto da final. Centímetros, se a bola de Kluivert na prorrogação tivesse entrado. Por que raios aquilo tinha acontecido? Era inexplicável. Terminava a saga da mais brilhante Holanda em Copas desde 1974. Aplaudida de pé pelos franceses e por todos que viram aquele time em ação. Em entrevista ao jornalista Paulo Vinícius Coelho no livro “Os 55 Maiores Jogos das Copas do Mundo”, de 2010, Tiemen van der Laan, editor da revista holandesa Voetbal International, deu a noção do que foi aquela perda:
“O pior é que soubemos depois que a França declarava: preferia enfrentar o Brasil na final a ter de jogar contra a Holanda. Não que o Brasil fosse pior, mas o jeito de jogar da Seleção Holandesa parecia ser uma ameaça mais séria aos franceses. E pensar que chegamos tão perto.”
Pois é. Uma pena que ainda não existe máquina do tempo. E que o gol não tinha mais alguns centímetros para aquela bola do Kluivert…
A ESPERANÇA NO PÉ QUENTE
Após o Mundial, Guus Hiddink deixou o comando da Holanda após 38 jogos, 22 vitórias, oito empates e apenas oito derrotas. Para o seu lugar, a Federação escolheu Frank Rijkaard, campeão europeu com a laranja em 1988 e multicampeão pelo Milan e pelo Ajax. Com o passado vencedor, o novo treinador era a esperança de brindar aquela geração com uma taça. Mais precisamente a Eurocopa de 2000, que seria sediada em conjunto pela própria Holanda e pela Bélgica. Ou seja: que presente melhor para a torcida do que um troféu em casa?
Rijkaard manteve obviamente a base de Hiddink e disputou uma série de amistosos preparatórios para o torneio continental. Ainda em 1998, a equipe bateu o Peru (2 a 0) e empatou com Gana (0 a 0) e Alemanha (1 a 1). Em 1999, ao time mostrou um poder de fogo tremendo, mas sérios problemas defensivos que culminaram em nove jogos sem vitórias. Foram sete empates e duas derrotas, incluindo um resultado maluco contra a Bélgica (5 a 5, com três de Kluivert e dois de Davids) e dois empates contra o Brasil, um em casa (2 a 2) e outro fora (2 a 2). Em fevereiro de 2000, enfim, um triunfo de respeito: 2 a 1 sobre a Alemanha, seguido de empate em 2 a 2 com a Bélgica, um 0 a 0 com a Escócia e vitórias sobre Romênia (2 a 1) e Polônia (3 a 1). Parecia que o time estava de volta aos trilhos. Com poucas alterações nos convocados em relação aos selecionados em 1998 – entre as novidades, destaque para Bosvelt, Van Bronckhorst e Roy Makaay -, era hora de disputar a Euro em casa.
ACONTECEU DE NOVO PARTE 2
Na Euro, o time tinha um grupo terrível pela frente: Dinamarca, República Checa (de Nedved, Smicer, Koller e Rosicky) e França, então campeã mundial. Mas, com um futebol refinado e que lembrava bastante o de 1998, a equipe venceu todos os rivais. Primeiro, bateu os checos por 1 a 0 com um gol de Frank de Boer. Depois, venceu categoricamente a Dinamarca por 3 a 0, com gols de Kluivert, Ronald de Boer e Zenden. E, para finalizar uma primeira fase magnífica, bateu a badalada França por 3 a 2, de virada, com gols de Kluivert, Frank de Boer e Zenden. Com o moral lá em cima, os laranjas enfrentaram mais uma vez a Iugoslávia em uma fase de mata-mata. E, com uma atuação de gala, golearam por 6 a 1, com três gols de Kluivert, dois de Overmars e um contra de Govedarica.
Chegou, então, a semifinal. Na Amsterdam Arena. O palco perfeito para sacramentar a vaga na decisão. Não havia outro caminho para aquele time. Era natural. Quatro jogos, quatro vitórias, muitos gols… Só que tinha a Itália. Cannavaro, Nesta e Maldini na retaguarda. Albertini no meio. E ainda Inzaghi e Del Piero no ataque, com Totti no banco só esperando sua hora chegar. Pareo duríssimo. Ingrato. Mas que pareceu mais fácil quando Zambrotta, aos 34’, levou vermelho. Com um a mais e seu poder de fogo, claro que a Holanda iria fazer um gol! Mas não fez. Bergkamp mandou uma bola na trave. Frank de Boer perdeu um pênalti defendido por Toldo. No segundo tempo, outro pênalti. E Kluivert chutou na trave. Era inacreditável! Parecia que tinham enterrado um sapo no gramado, não era possível!

Ao fim do tempo regulamentar, o placar ficou mesmo em 0 a 0. Mais 30 minutos de prorrogação e nada. Ou seja: pênaltis de novo. E, com um desempenho pífio de seus batedores (três erros em quatro chutes), a Holanda perdeu na marca da cal pela quarta vez seguida em disputas como essa. Deu Itália, 3 a 1, que curiosamente também vinha de derrotas nos pênaltis, mas em Copas: 1990 (semifinal), 1994 (final) e 1998 (quartas de final). Era o fim daquele time. E o fim da trajetória de Rijkaard no comando da seleção, que disse: “Eu tinha para mim mesmo um objetivo quando eu comecei na seleção que era vencer a Eurocopa. Eu falhei e acho que agora é hora de um novo técnico. Só quero agradecer a todos os jogadores pelo apoio. Nós praticamos pênaltis todos os dias e o jogo de hoje mostrou que bater um pênalti é algo especial que não é o nosso forte”. Além de Rijkaard, Bergkamp também se despediu da seleção depois daquela Euro. E quem também se despediu foi a harmonia e o brilho, que minguaram exatamente depois de mais uma dolorida derrota.
A ESPERANÇA

O baque de duas eliminações nos dois principais torneios futebolísticos do planeta fez com que a Holanda perdesse o rumo e ficasse de fora da Copa do Mundo de 2002. Em 2004, enfim, um breve momento de alegria: o time venceu sua primeira disputa de pênaltis, ao bater a Suécia nas quartas de final da Eurocopa por 5 a 4. No entanto, os laranjas caíram diante de Portugal, na semifinal. Em 2006, uma nova Copa do Mundo, mas novo revés para Portugal: 1 a 0, na histórica Batalha de Nuremberg. Em 2010, o mundo viu uma Holanda enfim finalista, mas totalmente fora de suas origens, jogando um futebol pragmático e sem o brilho de antes. Resultado: derrota para a Espanha na prorrogação por 1 a 0. Em 2014, eis que uma nova Holanda surgiu, com muitos jovens. Na estreia, contra a algoz Espanha, lapsos de arte foram vistos na Fonte Nova na goleada de 5 a 1 sobre os espanhóis (leia mais clicando aqui), mas foi só. O time chegou até a semifinal, perdeu para a Argentina (adivinhe…) nos pênaltis e ficou com o terceiro lugar até golear o risível time brasileiro por 3 a 0.
Em 2018, tem Copa, mas não tem Holanda, que não conseguiu a classificação. Há 20 anos que o torcedor tenta entender os motivos dos fracassos de sua seleção, mas nunca consegue encontrar. E há 20 anos que ele olha para a parede e vê aquele onze titular na Copa da França. O último time com dotes mágicos que vestiu a camisa laranja e o calção branco. Um time que não ganhou medalha, nem levantou troféu. Mas que mesmo assim conseguiu aplausos. E ser imortal.
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