(parece bastante interessante esse livro, alguém já leu?)
Trecho de
Religião para Ateus, de Alain de Botton
Sabedoria sem doutrina
1.
A pergunta mais enfadonha e inútil que se pode fazer sobre qualquer religião é se ela é ou não verdadeira — no sentido de ter vindo dos céus ao som de trombetas e de ser governada sobrenaturalmente por profetas e seres celestiais.
Para poupar tempo, e sob o risco de uma dolorosa perda de leitores já no início, vamos afirmar de forma franca que obviamente nenhuma religião é verdadeira num sentido concedida-por-Deus. Este é um livro para pessoas incapazes de acreditar em milagres, espíritos ou histórias de sarça ardente, e que não têm qualquer interesse maior nos feitos de homens e mulheres incomuns, como a santa do século XIII Inês de Montepulciano, que diziam ser capaz de levitar meio metro enquanto rezava e de ressuscitar crianças — e que, no fim da vida (supostamente), ascendeu aos céus do sul da Toscana nas costas de um anjo.
2.
Tentar provar a não existência de Deus pode ser uma atividade divertida para ateus. Críticos pragmáticos da religião encontraram grande satisfação no desnudamento da idiotia de crentes com cruel minúcia, parando somente após sentirem ter revelado seus inimigos como absolutos tolos ou maníacos.
Embora esse exercício tenha suas recompensas, a real questão não é se Deus existe ou não, mas para onde levar a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe. A premissa deste livro é que deve ser possível manter-se como um ateu resoluto e, não obstante, esporadicamente considerar as religiões úteis, interessantes e reconfortantes — e ter uma curiosidade quanto às possibilidades de trazer algumas de suas ideias e práticas para o campo secular.
É possível não sentir atração pela doutrina da Santíssima Trindade cristã e pelo Nobre Caminho Óctuplo budista e, ainda assim, interessar- se pelas maneiras como as religiões fazem sermões, promovem a moralidade, engendram um espírito de comunidade, utilizam a arte e a arquitetura, inspiram viagens, exercitam as mentes e estimulam a gratidão pela beleza da primavera. Num mundo ameaçado por fundamentalistas religiosos ou seculares, deve ser possível equilibrar uma rejeição da fé e uma reverência seletiva por rituais e conceitos religiosos.
É quando paramos de acreditar que as religiões foram outorgadas do alto ou que são totalmente insanas que as coisas ficam mais interessantes. Podemos então reconhecer que inventamos as religiões para servirem a duas necessidades centrais, que existem até hoje e que a sociedade secular não foi capaz de resolver por meio de nenhuma habilidade especial: primeiro, a necessidade de viver juntos em comunidades e em harmonia apesar dos nossos impulsos egoístas e violentos profundamente enraizados. E, segundo, a necessidade de lidar com aterrorizantes graus de dor, que surgem da nossa vulnerabilidade ao fracasso profissional, a relacionamentos problemáticos, à morte de entes queridos e a nossa decadência e morte. Deus pode estar morto, mas as questões urgentes que nos impulsionaram a inventá-lo ainda nos sensibilizam e exigem resoluções que não desaparecem quando somos instados a perceber algumas imprecisões científicas na narrativa sobre o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes.
O erro do moderno ateísmo tem sido negligenciar a quantidade de aspectos que permanecem relevantes após o descarte dos princípios centrais das fés. Assim que paramos de sentir que devemos nos prostrar diante delas ou denegri-las, estamos livres para descobrir as religiões como repositórios de uma miríade de conceitos engenhosos, com os quais podemos tentar mitigar alguns dos males mais persistentes e malcuidados da vida secular.
3.
Eu cresci num lar obstinadamente ateu, como filho de dois judeus seculares que colocavam a crença religiosa num nível similar ao da existência do Papai Noel. Lembro-me do meu pai levando minha irmã às lágrimas numa tentativa de fazê-la abandonar a noção modestamente sustentada de que um deus recluso poderia viver em alguma parte do universo. Ela tinha 8 anos na época. Se meus pais descobriam que algum membro do seu círculo social nutria sentimentos religiosos clandestinos, eles passavam a destinar-lhe o tipo de piedade normalmente reservada àqueles diagnosticados com uma doença degenerativa e nunca mais seriam persuadidos a considerar aquela pessoa seriamente.
Embora eu fosse bastante influenciado pelas atitudes dos meus pais, nos meus vinte e poucos anos passei por uma crise de falta de fé. Meus sentimentos de dúvida tiveram origem na audição das cantatas de Bach, desenvolveram-se na presença de certas madonas de Bellini e tornaram- -se avassaladores com uma introdução à arquitetura zen. Contudo, foi somente muito tempo após meu pai estar morto — e enterrado sob uma lápide com inscrições em hebraico, num cemitério judaico em Willesden, no noroeste de Londres, porque, de maneira intrigante, ele se abstivera de fazer preparativos mais seculares — que comecei a encarar toda a dimensão da minha ambivalência acerca dos princípios doutrinários em mim inculcados na infância.
Eu jamais hesitei na minha certeza de que Deus não existe. Eu simplesmente fui libertado pelo pensamento de que pode haver uma maneira de me relacionar com a religião sem precisar endossar seu conteúdo sobrenatural — uma maneira, para colocar de forma mais abstrata, de pensar em Pais sem perturbar minha respeitosa memória do meu próprio pai. Eu reconheci que minha resistência persistente às teorias sobre vida após a morte ou sobre habitantes do céu não podia justificar o abandono de música, edificações, orações, rituais, festividades, santuários, peregrinações, refeições comunais e manuscritos ilustrados das fés.
A sociedade secular tem sido injustamente empobrecida pela perda de uma série de práticas e de temas com os quais os ateus geralmente acham impossível conviver, por parecerem associados demais com, para empregar a frase útil de Nietzsche, “os maus odores da religião”. Desenvolvemos um medo em relação à palavra moralidade. Nós nos irritamos com a perspectiva de ouvir um sermão. Fugimos da ideia de que a arte deveria inspirar felicidade ou ter uma missão ética. Não fazemos peregrinações. Não podemos construir templos. Não temos mecanismos para expressar gratidão. A noção de ler um livro de autoajuda tornou-se absurda para o erudito. Resistimos a exercícios mentais. Estranhos raramente cantam juntos. Somos presenteados com a escolha desagradável entre abraçar conceitos peculiares sobre deidades imateriais ou abrir mão totalmente de um conjunto de rituais reconfortantes, sutis ou apenas encantadores para os quais temos dificuldades de encontrar equivalentes na sociedade secular.
Ao desistir disso tudo, permitimos que a religião reivindicasse como seu domínio exclusivo áreas da experiência que deveriam pertencer a toda a humanidade — as quais não deveríamos ter vergonha de restituir ao campo secular. O próprio cristianismo primevo era bastante adepto de se apoderar das boas ideias dos outros, apropriando-se agressivamente incontáveis práticas pagãs que os ateus modernos tendem a evitar na equivocada crença de que são indelevelmente cristãs. A nova fé incorporou as celebrações de inverno, do hemisfério norte, e as repaginou como o Natal. Absorveu o ideal epicurista de viver junto numa comunidade filosófica e o transformou no que hoje conhecemos como monasticismo. E, nas arruinadas cidades do antigo Império Romano, inseriu-se alegremente nos espaços vazios de templos outrora devotados a heróis e temas pagãos.
O desafio colocado diante dos ateus é como reverter o processo de colonização religiosa: como dissociar ideias e rituais das instituições religiosas que os reivindicaram, mas que não os detêm verdadeiramente. Por exemplo, boa parte do que existe de melhor no Natal é totalmente desvinculado da história do nascimento de Cristo. Gira em torno de temas de comunidade, festividade e renovação que antecedem o contexto em que foram colocados ao longo dos séculos pelo cristianismo. Nossas necessidades espirituais estão prontas para ser libertadas do matiz particular dado a elas pelas religiões — ainda que, paradoxalmente, seja o estudo das religiões que frequentemente tem a chave para sua redescoberta e rearticulação.
O que se segue é uma tentativa de ler as fés, principalmente o cristianismo e, em menor grau, o judaísmo e o budismo, na esperança de provocar insights que possam ser úteis na vida secular, em particular em relação aos desafios da comunidade e do sofrimento mental e corporal. A tese subjacente não é que o secularismo seja errado, mas que com muita frequência secularizamos de maneira inadequada — na medida em que, no processo de nos livrarmos de ideias inviáveis, desnecessariamente abdicamos de algumas das partes mais úteis e atraentes das fés.
4.
A estratégia delineada neste livro irá, naturalmente, irritar partidários de ambos os lados do debate. Os religiosos se ofenderão com uma reflexão aparentemente brusca, seletiva e não sistemática de seus credos. Religiões não são bufês, eles protestarão, em que elementos particulares podem ser escolhidos de forma aleatória. Todavia, a ruína de muitas fés tem sido sua insistência pouco razoável em que os adeptos precisam comer tudo o que está no prato. Por que não deveria ser possível apreciar a representação de modéstia nos afrescos de Giotto e, ao mesmo tempo, ignorar a doutrina da anunciação, ou admirar a ênfase budista na compaixão e evitar deliberadamente suas teorias de vida após a morte? Para alguém desprovido de crença religiosa, retirar algo de um grupo de fés não é muito diferente de um amante da literatura que escolhe um punhado de escritores favoritos em meio ao cânone. Se aqui se mencionam apenas três das 21 maiores religiões, isso não é sinal de favoritismo ou de impaciência, mas apenas uma consequência de este livro enfatizar a comparação da religião em geral com o campo secular, e não no cotejo de uma série de credos.
Ateus do tipo militante também podem se sentir ultrajados, nesse caso por um livro que trata a religião como digna de ser uma incessante pedra de toque para nossos desejos. Eles apontarão o dedo para a furiosa intolerância institucional de muitas religiões e para as provisões igualmente profusas, embora menos ilógicas e autoritárias, de consolo e discernimento disponíveis na arte e na ciência. Eles podem, ainda, perguntar por que alguém que se declara sem disposição para aceitar tantas facetas da religião — que se sente incapaz de falar em nome de, digamos, concepções imaculadas ou de concordar com as afirmações feitas com reverência nos contos Jataka sobre a identidade do Buda como um coelho reencarnado — ainda deseje se associar a um tema tão comprometido quanto a fé.
A isso, a resposta é que as religiões merecem nossa atenção pela sua absoluta ambição conceitual, por mudarem o mundo de uma maneira que poucas instituições seculares fizeram. Elas conseguiram combinar teorias sobre ética e metafísica com um envolvimento prático em educação, moda, política, viagem, hospedaria, cerimônias de iniciação, edição de livros, arte e arquitetura — uma gama de interesses que eclipsa a extensão de conquistas até mesmo dos maiores e mais influentes movimentos e indivíduos seculares da história. Para aqueles interessados na disseminação e no impacto das ideias, é difícil não ficar fascinado por exemplos dos movimentos de maior sucesso educacional e intelectual que o planeta já testemunhou.
5.
Para concluir, este livro não tenta fazer justiça a religiões particulares; elas contam com seus próprios defensores. Em vez disso, ele tenta examinar aspectos da vida religiosa com conceitos que poderiam proveitosamente ser aplicados aos problemas da sociedade secular. Ele procura eliminar os aspectos mais dogmáticos das religiões a fim de extrair algumas facetas que poderiam se mostrar oportunas e reconfortantes a mentes céticas contemporâneas confrontadas com as crises e as amarguras da existência finita num planeta conturbado. Ele espera resgatar parte do que é maravilhoso, tocante e sábio em tudo o que não mais parece verdadeiro.
http://veja.abril.com.br/livros_mais_ve ... teus.shtml" onclick="window.open(this.href);return false;