Trem Bala Brasileiro
Enviado: 17 Mai 2015 11:28
por landic
Ou "Como a incompetencia favorece a desonestidade."
Um trem para Bangladânia
O Brasil queria ligar suas duas maiores cidades com um trem-bala. Uma obra de bilhões de dólares para ser inaugurada até a Copa do Mundo. Um empresário italiano acusado de fraude e um político brasileiro se apresentaram como solução, encenando uma peça de mistérios até hoje indecifrados.
RESUMO:
Peguei as partes que julguei mais importantes do texto e colei aqui.
Um trem para Bangladânia
O Brasil queria ligar suas duas maiores cidades com um trem-bala. Uma obra de bilhões de dólares para ser inaugurada até a Copa do Mundo. Um empresário italiano acusado de fraude e um político brasileiro se apresentaram como solução, encenando uma peça de mistérios até hoje indecifrados.
RESUMO:
Peguei as partes que julguei mais importantes do texto e colei aqui.
Spoiler:
Em 24 de junho de 2004, uma portaria assinada pelo ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, criou um Grupo de Trabalho liderado pela Valec. O Grupo deveria analisar e escolher o estudo de viabilidade que orientaria uma futura licitação do trem-bala, onde seria apontada a construtora encarregada pela obra. Era uma espécie de manual de instruções que mostraria, por exemplo, quantos passageiros seriam transportados por ano, qual seria o custo da passagem, por quais adequações a ferrovia já existente deveria passar para receber trens velozes, onde seriam as paradas, onde haveria túneis e quanto deveria ser o orçamento total do empreendimento — dos pregos aos vagões.
A Italplan de Moreno Gori havia se adiantado. Desde o início de 2004, antes de existir Grupo de Trabalho, a empresa já levantava informações para o empreendimento bilionário. “Soubemos do projeto do trem-bala através de contatos locais”, me escreveu Roberta Peccini, atual presidente da Italplan, Engineering, Environment & Transports S.p.A. Ao final da chamada pública, três estudos chegaram ao Grupo.[...]
[...]O prazo do Grupo de Trabalho para analisar as propostas foi prorrogado duas vezes até que, em abril de 2005, seis meses depois do tour milanês de Juquinha, um relatório caiu nas mãos do ministro Alfredo Nascimento. Assinado por membros da Secretaria de Gestão dos Programas de Transportes, Secretaria de Política Nacional de Transportes, Agência Nacional de Transportes Terrestres, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, BNDES e Valec, o texto dizia que o estudo da Transcorr — iniciado oito anos antes — era “da mais alta credibilidade e serve de referência para as análises das alternativas de projetos a serem avaliados pelo GT”. O texto eliminava a Transcorr, mas utilizava seu material como parâmetro para declarar quem seria o vencedor.
O estudo Siemens/Odebrecht/Interglobal indicava a obra mais barata entre os concorrentes e o menor tempo de construção. Enquanto a Transcorr estimava um custo de US$ 7,2 bilhões e sete anos de obras, o consórcio Siemens/Odebrecht/Interglobal previa gastos de US$ 6,3 bilhões, em seis anos. Mas a proposta alemã-brasileira foi eliminada porque previa que US$ 5 bilhões, 80% do investimento, fossem pago com dinheiro público. Brasília queria que saísse tudo do bolso da iniciativa privada.
No estudo da Italplan, as obras levariam sete anos e custariam bem mais, US$ 9 bilhões. Os técnicos italianos, no entanto, ofereciam uma alternativa irresistível: nem um centavo sairia da caixa-forte do Planalto. Num sistema de concessão 100% privado, o trem-bala previsto pela Italplan teria uma passagem muito mais barata do que o tíquete previsto pelos concorrentes: US$ 39, contra US$ 77 da Siemens/Odebrecht/Interglobal e US$ 81 da Transcorr.
Negligenciada pelos outros estudos, a geração de tributos ao país foi estimada pela Italplan. Era uma monstruosidade: US$ 73,7 bilhões durante os 35 anos em que a concessão administraria a linha — mais de US$ 2 bilhões ao ano.
Citando a Italplan como “uma empresa de engenharia com grande experiência no setor de transporte de alta velocidade, tendo o próprio pessoal contribuído para o desenvolvimento do trem-bala italiano”, o relatório foi definitivo: “o Grupo de Trabalho recomenda ao Sr. Ministro dos Transportes implementar as medidas institucionais necessárias à implantação de uma ligação ferroviária para transporte de passageiros por trem de alta velocidade entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, considerando como referência a modelagem técnica e financeira concebida no Projeto Italplan, para efeito do processo de licitação pública de concessão”.[...]
[...]Após reuniões com Valec e Italplan, o Tribunal de Contas da União (TCU) verificou os números de um arquivo enviado por e-mail chamado Analisi Finanziaria.xls. Era a planilha financeira montada pela Italplan e tida por ela e pela Valec como o cálculo oficial para as operações do trem. Técnicos do TCU estudaram as tabelas por meses e, ao fim, constataram problemas: “erro no cálculo da despesa com energia elétrica”, “utilização incorreta da alíquota do PIS/Cofins”, “exclusão da CSLL da base de cálculo do Imposto de Renda”. Diante das incongruências, o tribunal enviou uma diligência à Valec em busca de respostas.
A estatal se comprometeu em corrigir o documento e o remeteu novamente ao TCU. Técnicos abriram o arquivo e destrincharam o projeto outra vez. Dezenas de falhas foram apontadas. Ainda assim, o estudo foi aprovado com ressalvas em abril de 2007.
As ressalvas viraram nota de rodapé na imprensa, onde o projeto ganhava força como aprovado. Mas um consultor legislativo da Câmara dos Deputados trabalhava em silêncio. Eduardo Fernandez Silva é mestre em economia e conhece bem projetos de engenharia financeira como os da Italplan. Em dezembro de 2007, Fernandez pôs o ponto final em um estudo que começava com a citação de um samba de 1966 cantado por Ataulfo Alves.[...]
[...]O relatório analisou os concorrentes ao estudo de viabilidade e se ateve especialmente ao vencedor Italplan. Fernandez desossou os números como um açougueiro. Após 25 páginas, o consultor abriu suas conclusões. “A viabilidade da implantação do Trem de Alta Velocidade ligando Rio de Janeiro a São Paulo depende da ocorrência de hipóteses altamente improváveis, e as afirmações em que se baseia a conclusão oposta são frágeis”.
Um dos principais problemas era a demanda de passageiros prevista no estudo, estimada em 32,6 milhões por ano pela Italplan. “Em 2006, o número total de viajantes entre Rio de Janeiro e São Paulo, por ônibus, automóvel e avião, foi de 8,4 milhões”, calculou Fernandez. “Para que a previsão adotada ocorra será necessário que todos os viajantes da ponte aérea Rio-São Paulo em 2006 optem pelo trem, e que se somem a eles o total de viajantes por ônibus que chegaram ou saíram das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro com origem ou destino a todas as cidades de todos os estados brasileiros, e países vizinhos”, acrescentou o consultor. Como o número de passageiros estimado afeta a tarifa, Fernandez também viu inconsistências no preço dos bilhetes proposto pelos italianos, 49% mais barato do que o tíquete apurado pelo consórcio da Siemens. “Para atingir o valor previsto será necessário, ainda, que os viajantes optem sempre pelo trem e o seu número cresça, a partir de 2006, à taxa superior a 10% ao ano. As projeções da Italplan não são realistas e não existe a hipótese de elas virem a se realizar”, escreveu.
Sobre os bilhões de impostos que seriam gerados: “carece de credibilidade: não há memória de cálculo e, no resto do mundo, os trens-bala são subsidiados. Os relatórios não dizem uma palavra sequer sobre porque no Brasil será diferente”.
O prazo de construção também foi criticado. “A Itália demorou 22 anos para implantar a sua primeira linha de trem rápido e prevê, hoje, melhorias em linhas férreas existentes — de forma a adequá-las ao trem rápido — ao custo de 28,8 milhões de euros por quilômetro. O Grupo de Trabalho aceitou a informação de que o trem-bala brasileiro seria implantado em apenas sete anos. Aceitou também que a sua implantação — a partir do zero –, custaria menos de 15 milhões de euros por quilômetro”, escreveu Fernandez. “As razões pelas quais se espera que os brasileiros sejam tão mais eficientes que os italianos não foram explicitadas”.
Com tantos problemas no projeto, o consultor passou a questionar a alegada “larga experiência em trens de alta velocidade” da Italplan. “A alegação não se sustenta. A empresa responsável pelo projeto escolhido pelo Grupo de Trabalho mostra, em seu sítio da internet, apenas um projeto de trem de alta velocidade executado sob sua responsabilidade, exatamente o Rio de Janeiro — São Paulo”.[...]
[...]Durante o namoro entre Valec e Italplan jamais se falou em dinheiro, ao menos publicamente. Quanto custaria o serviço dos técnicos italianos, trabalho que começara, ao menos, em 2004? A resposta estava no relatório aprovado pelo Grupo de Trabalho, aceito pelo ministro dos Transportes e analisado pelo consultor Eduardo Fernandez. “A Italplan se tornará, após o processo licitatório, detentora do direito de ser ressarcida pelo custo de desenvolvimento do projeto, cujo valor será objeto de deliberação posterior”.[...]
[...]As incongruências que rondavam o estudo da Italplan e a condenação de Moreno não abalaram o governo. Em junho de 2009, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, garantiu que o trem-bala sairia. Dilma conhecia a Italplan: havia se encontrado com seus representantes na Embaixada do Brasil em Roma, em 2007, durante um evento para empresários italianos interessados em investir no projeto. O prazo dado pela ministra: antes da Copa. “Nosso projeto é que esteja integralmente pronto em 2014”, afirmou Dilma em Brasília durante o 7º balanço sobre o andamento das obras do PAC, programa no qual o trem era a grande estrela e uma das obras mais caras. Faltavam quatro anos para o primeiro jogo do Mundial no Brasil. Nem mesmo as previsões mais otimistas previam a construção em tão pouco tempo: os derrotados Interglobal/Siemens/Odebrecht estimavam uma obra de seis anos.
O Governo Federal começou 2010 disposto a tirar o projeto do papel. Em julho, o presidente Lula divulgou o edital de licitação da obra. O leilão que escolheria a construtora da linha deveria ocorrer em 16 de dezembro, às 11h, na sede da Bovespa, quando os interessados apresentariam suas propostas. Mesmo já admitindo a necessidade de uso de dinheiro público, o presidente não perderia a chance de comandar uma sessão de gala em plena Bolsa no ano em que a economia do Brasil cresceria 7,5%.
“Acho plenamente possível inaugurar até as Olimpíadas”, cravou Lula, dando um passo atrás e admitindo a impossibilidade de usufruir do trem-bala durante a Copa, jogando o prazo para os Jogos de 2016, no Rio. A seu modo, o presidente aproveitou para cutucar os críticos, comparando as dificuldades do trem brasileiro às dos idealizadores da Torre Eiffel: “a Torre deve ter enfrentado mais de cinco mil ações populares”, disse. E se irritou com a cobrança sobre o prazo inicial da obra brasileira, que deveria servir à Copa do Mundo.
Lula estava flanqueado pelo nova ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, que substituíra Dilma Rousseff, em campanha pela Presidência da República. Erenice declarou, confiante: “por que faremos o trem de alta velocidade? Porque podemos, porque estamos maduros, porque temos o comando firme do presidente da República”.
Um mês antes da data estipulada para a entrega dos envelopes, nuves densas de rumores se espalharam por Brasília: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez — empresas interessadas na licitação — pressionavam o governo por um adiamento, apesar de um consórcio liderado por coreanos prometer uma proposta no dia combinado, com depósito de R$ 340 milhões como garantia. O presidente relutou até a noite de 24 de novembro, quando deu sinal para que assessores informassem a Agência Nacional de Transportes Terrestres sobre o adiamento do prazo.
O Planalto deu tempo às empresas até meados de 2011 acreditando que as coisas se ajustariam, mas a expectativa foi açoitada por uma tempestade impiedosa.
Ações do Ministério Público bloqueando a licitação, disputas políticas na Câmara pondo em xeque a prioridade dada à obra, outro estudo (desta vez de um consultor do Senado) confirmando as conclusões de Eduardo Fernandez e até boatos de que a base do governo era contra o projeto — isolando a presidente recém-eleita Dilma Rousseff, entusiasta do trem desde que era ministra da Casa Civil — jogaram a concorrência em um lamaçal. O episódio crucial foi encenado no começo de julho, quando o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, recebeu uma ordem de Dilma. A presidente foi dura: chamou o ministério comandado pelo Partido da República (PR) de “descontrolado” e exigiu que o ministro pusesse fim em uma era negra da pasta que, segundo edição da revista Veja que circulou em 2 de julho de 2011, cobrava “um pedágio de 4% sobre o valor dos pagamentos das empreiteiras”. Propina.
A espada de Nascimento decapitou as mais altas cabeças do ministério naquele mesmo dia, entre elas a do homem que há quase uma década reinava encastelado na Valec: Juquinha. Além dele, cairiam todos os membros da cúpula do Ministério dos Transportes, derrubados pelas denúncias. Três dias depois, o próprio ministro pediu demissão.
No dia 11 de julho, após a semana considerada de “faxina” no ministério, membros do governo roíam as unhas nos salões da Bovespa, centro de São Paulo. O relógio bateu 14h em ponto. Era o horário limite para as apresentação de propostas para o primeiro leilão do trem-bala.
Ninguém apareceu.
De joia do PAC, o trem passou à colônia de moscas.
A Italplan continuava atuando nos bastidores mesmo após o fiasco. Vendo seu trabalho desmoralizado e com poucas chances de ser levado ao canteiro de obras, a companhia imprimiu uma fatura e mandou entregar na Valec, na esperança de receber pelos anos de parceria com a estatal. O valor não havia sido combinado previamente, e a Italplan preencheu o cheque como quis — pediu 261,7 milhões de euros ao Tesouro.
Enquanto esperavam, seus diretores evitavam a vida pública, buscando um acordo com a Valec para receber o que julgavam o custo do trabalho que tiveram no Brasil. A estatal não efetuou o depósito, e não se falou mais nos italianos até o começo de 2012, quando a Embaixada Brasileira em Roma foi surpreendida por uma notificação da Justiça local.
Na província de Arezzo, um juiz da comarca de Montevarchi — cidade de 22 mil habitantes no interior da Toscana, vizinha à sede da Italplan — determinava o congelamento das contas da embaixada no Banco do Brasil para pagamento de uma parcela de 15,7 milhões de euros à Italplan.
Outras decisões judiciais, da mesma natureza, bloquearam igualmente as contas dos demais postos do Brasil na Itália: consulado-geral em Roma, representação permanente junto à FAO e consulado-geral em Milão. A decisão estremeceu o Palazzo Pamphilj, sede diplomática brasileira na capital italiana — ironicamente, um prédio adquirido em troca de café, assim como os trens húngaros dos anos 1970.
A disputa judicial levou Ruy Nogueira, secretário-geral do Itamaraty, a Roma. Nogueira é tido como um dos melhores negociadores do país. Na mala, levou argumentos da Advocacia Geral da União sobre erros processuais. Um deles: o Brasil havia sido indevidamente citado. Outro, mais grave: o juiz da província de Arezzo não teria competência jurídica para legislar sobre bens extraterritoriais como embaixadas e consulados. As contas do Brasil na Itália são protegidas por convenções claras sobre imunidade diplomática. O processo era, no mínimo, descuidado. A negociação avançou durante dois dias, entre 14 e 15 de março de 2012, durante encontros de Ruy Nogueira com o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália, Giulio Terzi, e com o então secretário-geral da chancelaria italiana, Giampiero Massolo. As reuniões ocorreram na sede do ministério de Negócios Estrangeiros da Itália, em Roma. Ao fim, a Italplan não colocou as mãos no dinheiro.[...]
[...]Em 19 de dezembro de 2012, com o projeto do trem-bala enguiçado há um ano e meio, Dilma tirou das mãos da Valec a tarefa de executar a ferrovia, anulando o trecho do decreto presidencial de Lula que dava à estatal a missão de “promover os estudos para implantação de Trens de Alta Velocidade”. A obra foi direcionada a outro órgão ligado ao Ministério dos Transportes, a Empresa de Planejamento e Logística S.A (EPL). A Valec, chacoalhada por denúncias de corrupção e por uma licitação fracassada em sua principal missão, estava formalmente afastada do trem-bala.
Entre 2004 e 2014, a estatal custou aos cofres públicos brasileiros — entre despesas com “pessoal, custeio, investimentos e inversões financeiras” — quase R$ 14 bilhões. Durante as investigações da operação Trem Pagador, a mesma que prendeu Juquinha, a Polícia Federal estimou que até R$ 1 bilhão desse orçamento pode ter sido desviado somente em uma das obras administradas pela Valec, a ferrovia Norte-Sul. O processo ainda aguarda julgamento, e Juquinha se defende dele negando todas as acusações.
No Brasil, a briga judicial do governo com a Italplan terminou no dia 1º de fevereiro de 2013, quando o presidente do Superior Tribunal de Justiça do Brasil, Felix Fischer, negou o pagamento aos italianos alegando “ofensa à ordem pública e à soberania nacional”. Em sua decisão, Fischer disse que a Italplan não anexou qualquer tipo de contrato que comprovasse uma ligação formal com a Valec.
A Italplan cometera um erro básico no processo? Simplesmente esquecera de anexar o contrato, único instrumento que lhe daria credibilidade no litígio de 261,7 milhões de euros?[...]
[...]A Valec e a cúpula do Ministério dos Transportes jamais se preocuparam em saber quem eram os diretores à frente da Italplan, sobretudo Moreno Gori? Nunca exigiram da Italplan comprovação dos serviços que a empresa diz ter prestado para as ferrovias italianas? Por que ignoraram por tanto tempo o relatório de Eduardo Fernandez, um documento que colocava muitas dúvidas sobre a viabilidade do projeto? Por que não adequaram o projeto às ressalvas do Tribunal de Contas da União? Por que, apesar de tudo isso, a obra foi confirmada por Lula e Dilma para a Copa do Mundo diversas vezes, mesmo quando nem o mais otimista dos estudos previa prazos tão curtos para a inauguração? Como Valec e Italplan mantiveram uma relação por tantos anos sem assinar um contrato determinando parâmetros triviais, como preço dos serviços? Se esse contrato existe — e tudo indica que não — ele deve estar nas mãos da Italplan. A empresa, no entanto, não se dispôs a enviá-lo a mim.
As respostas podem passar pelas dificuldades de comunicação entre os muitos atores da máquina pública brasileira, pela carência de pessoal capaz de dar atenção aos sinais vermelhos que piscaram ao longo do caminho, pelo desconhecimento técnico dos políticos encarregados de viabilizar a obra e pelo entusiasmo quase irracional de realizar um projeto magnânimo para apresentar ao mundo durante a Copa.
E podem passar, é claro, por caminhos mais tortuosos.
Publicamente, nenhum inquérito foi aberto sobre o trem-bala brasileiro.
A Italplan de Moreno Gori havia se adiantado. Desde o início de 2004, antes de existir Grupo de Trabalho, a empresa já levantava informações para o empreendimento bilionário. “Soubemos do projeto do trem-bala através de contatos locais”, me escreveu Roberta Peccini, atual presidente da Italplan, Engineering, Environment & Transports S.p.A. Ao final da chamada pública, três estudos chegaram ao Grupo.[...]
[...]O prazo do Grupo de Trabalho para analisar as propostas foi prorrogado duas vezes até que, em abril de 2005, seis meses depois do tour milanês de Juquinha, um relatório caiu nas mãos do ministro Alfredo Nascimento. Assinado por membros da Secretaria de Gestão dos Programas de Transportes, Secretaria de Política Nacional de Transportes, Agência Nacional de Transportes Terrestres, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, BNDES e Valec, o texto dizia que o estudo da Transcorr — iniciado oito anos antes — era “da mais alta credibilidade e serve de referência para as análises das alternativas de projetos a serem avaliados pelo GT”. O texto eliminava a Transcorr, mas utilizava seu material como parâmetro para declarar quem seria o vencedor.
O estudo Siemens/Odebrecht/Interglobal indicava a obra mais barata entre os concorrentes e o menor tempo de construção. Enquanto a Transcorr estimava um custo de US$ 7,2 bilhões e sete anos de obras, o consórcio Siemens/Odebrecht/Interglobal previa gastos de US$ 6,3 bilhões, em seis anos. Mas a proposta alemã-brasileira foi eliminada porque previa que US$ 5 bilhões, 80% do investimento, fossem pago com dinheiro público. Brasília queria que saísse tudo do bolso da iniciativa privada.
No estudo da Italplan, as obras levariam sete anos e custariam bem mais, US$ 9 bilhões. Os técnicos italianos, no entanto, ofereciam uma alternativa irresistível: nem um centavo sairia da caixa-forte do Planalto. Num sistema de concessão 100% privado, o trem-bala previsto pela Italplan teria uma passagem muito mais barata do que o tíquete previsto pelos concorrentes: US$ 39, contra US$ 77 da Siemens/Odebrecht/Interglobal e US$ 81 da Transcorr.
Negligenciada pelos outros estudos, a geração de tributos ao país foi estimada pela Italplan. Era uma monstruosidade: US$ 73,7 bilhões durante os 35 anos em que a concessão administraria a linha — mais de US$ 2 bilhões ao ano.
Citando a Italplan como “uma empresa de engenharia com grande experiência no setor de transporte de alta velocidade, tendo o próprio pessoal contribuído para o desenvolvimento do trem-bala italiano”, o relatório foi definitivo: “o Grupo de Trabalho recomenda ao Sr. Ministro dos Transportes implementar as medidas institucionais necessárias à implantação de uma ligação ferroviária para transporte de passageiros por trem de alta velocidade entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, considerando como referência a modelagem técnica e financeira concebida no Projeto Italplan, para efeito do processo de licitação pública de concessão”.[...]
[...]Após reuniões com Valec e Italplan, o Tribunal de Contas da União (TCU) verificou os números de um arquivo enviado por e-mail chamado Analisi Finanziaria.xls. Era a planilha financeira montada pela Italplan e tida por ela e pela Valec como o cálculo oficial para as operações do trem. Técnicos do TCU estudaram as tabelas por meses e, ao fim, constataram problemas: “erro no cálculo da despesa com energia elétrica”, “utilização incorreta da alíquota do PIS/Cofins”, “exclusão da CSLL da base de cálculo do Imposto de Renda”. Diante das incongruências, o tribunal enviou uma diligência à Valec em busca de respostas.
A estatal se comprometeu em corrigir o documento e o remeteu novamente ao TCU. Técnicos abriram o arquivo e destrincharam o projeto outra vez. Dezenas de falhas foram apontadas. Ainda assim, o estudo foi aprovado com ressalvas em abril de 2007.
As ressalvas viraram nota de rodapé na imprensa, onde o projeto ganhava força como aprovado. Mas um consultor legislativo da Câmara dos Deputados trabalhava em silêncio. Eduardo Fernandez Silva é mestre em economia e conhece bem projetos de engenharia financeira como os da Italplan. Em dezembro de 2007, Fernandez pôs o ponto final em um estudo que começava com a citação de um samba de 1966 cantado por Ataulfo Alves.[...]
[...]O relatório analisou os concorrentes ao estudo de viabilidade e se ateve especialmente ao vencedor Italplan. Fernandez desossou os números como um açougueiro. Após 25 páginas, o consultor abriu suas conclusões. “A viabilidade da implantação do Trem de Alta Velocidade ligando Rio de Janeiro a São Paulo depende da ocorrência de hipóteses altamente improváveis, e as afirmações em que se baseia a conclusão oposta são frágeis”.
Um dos principais problemas era a demanda de passageiros prevista no estudo, estimada em 32,6 milhões por ano pela Italplan. “Em 2006, o número total de viajantes entre Rio de Janeiro e São Paulo, por ônibus, automóvel e avião, foi de 8,4 milhões”, calculou Fernandez. “Para que a previsão adotada ocorra será necessário que todos os viajantes da ponte aérea Rio-São Paulo em 2006 optem pelo trem, e que se somem a eles o total de viajantes por ônibus que chegaram ou saíram das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro com origem ou destino a todas as cidades de todos os estados brasileiros, e países vizinhos”, acrescentou o consultor. Como o número de passageiros estimado afeta a tarifa, Fernandez também viu inconsistências no preço dos bilhetes proposto pelos italianos, 49% mais barato do que o tíquete apurado pelo consórcio da Siemens. “Para atingir o valor previsto será necessário, ainda, que os viajantes optem sempre pelo trem e o seu número cresça, a partir de 2006, à taxa superior a 10% ao ano. As projeções da Italplan não são realistas e não existe a hipótese de elas virem a se realizar”, escreveu.
Sobre os bilhões de impostos que seriam gerados: “carece de credibilidade: não há memória de cálculo e, no resto do mundo, os trens-bala são subsidiados. Os relatórios não dizem uma palavra sequer sobre porque no Brasil será diferente”.
O prazo de construção também foi criticado. “A Itália demorou 22 anos para implantar a sua primeira linha de trem rápido e prevê, hoje, melhorias em linhas férreas existentes — de forma a adequá-las ao trem rápido — ao custo de 28,8 milhões de euros por quilômetro. O Grupo de Trabalho aceitou a informação de que o trem-bala brasileiro seria implantado em apenas sete anos. Aceitou também que a sua implantação — a partir do zero –, custaria menos de 15 milhões de euros por quilômetro”, escreveu Fernandez. “As razões pelas quais se espera que os brasileiros sejam tão mais eficientes que os italianos não foram explicitadas”.
Com tantos problemas no projeto, o consultor passou a questionar a alegada “larga experiência em trens de alta velocidade” da Italplan. “A alegação não se sustenta. A empresa responsável pelo projeto escolhido pelo Grupo de Trabalho mostra, em seu sítio da internet, apenas um projeto de trem de alta velocidade executado sob sua responsabilidade, exatamente o Rio de Janeiro — São Paulo”.[...]
[...]Durante o namoro entre Valec e Italplan jamais se falou em dinheiro, ao menos publicamente. Quanto custaria o serviço dos técnicos italianos, trabalho que começara, ao menos, em 2004? A resposta estava no relatório aprovado pelo Grupo de Trabalho, aceito pelo ministro dos Transportes e analisado pelo consultor Eduardo Fernandez. “A Italplan se tornará, após o processo licitatório, detentora do direito de ser ressarcida pelo custo de desenvolvimento do projeto, cujo valor será objeto de deliberação posterior”.[...]
[...]As incongruências que rondavam o estudo da Italplan e a condenação de Moreno não abalaram o governo. Em junho de 2009, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, garantiu que o trem-bala sairia. Dilma conhecia a Italplan: havia se encontrado com seus representantes na Embaixada do Brasil em Roma, em 2007, durante um evento para empresários italianos interessados em investir no projeto. O prazo dado pela ministra: antes da Copa. “Nosso projeto é que esteja integralmente pronto em 2014”, afirmou Dilma em Brasília durante o 7º balanço sobre o andamento das obras do PAC, programa no qual o trem era a grande estrela e uma das obras mais caras. Faltavam quatro anos para o primeiro jogo do Mundial no Brasil. Nem mesmo as previsões mais otimistas previam a construção em tão pouco tempo: os derrotados Interglobal/Siemens/Odebrecht estimavam uma obra de seis anos.
O Governo Federal começou 2010 disposto a tirar o projeto do papel. Em julho, o presidente Lula divulgou o edital de licitação da obra. O leilão que escolheria a construtora da linha deveria ocorrer em 16 de dezembro, às 11h, na sede da Bovespa, quando os interessados apresentariam suas propostas. Mesmo já admitindo a necessidade de uso de dinheiro público, o presidente não perderia a chance de comandar uma sessão de gala em plena Bolsa no ano em que a economia do Brasil cresceria 7,5%.
“Acho plenamente possível inaugurar até as Olimpíadas”, cravou Lula, dando um passo atrás e admitindo a impossibilidade de usufruir do trem-bala durante a Copa, jogando o prazo para os Jogos de 2016, no Rio. A seu modo, o presidente aproveitou para cutucar os críticos, comparando as dificuldades do trem brasileiro às dos idealizadores da Torre Eiffel: “a Torre deve ter enfrentado mais de cinco mil ações populares”, disse. E se irritou com a cobrança sobre o prazo inicial da obra brasileira, que deveria servir à Copa do Mundo.
Lula estava flanqueado pelo nova ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, que substituíra Dilma Rousseff, em campanha pela Presidência da República. Erenice declarou, confiante: “por que faremos o trem de alta velocidade? Porque podemos, porque estamos maduros, porque temos o comando firme do presidente da República”.
Um mês antes da data estipulada para a entrega dos envelopes, nuves densas de rumores se espalharam por Brasília: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez — empresas interessadas na licitação — pressionavam o governo por um adiamento, apesar de um consórcio liderado por coreanos prometer uma proposta no dia combinado, com depósito de R$ 340 milhões como garantia. O presidente relutou até a noite de 24 de novembro, quando deu sinal para que assessores informassem a Agência Nacional de Transportes Terrestres sobre o adiamento do prazo.
O Planalto deu tempo às empresas até meados de 2011 acreditando que as coisas se ajustariam, mas a expectativa foi açoitada por uma tempestade impiedosa.
Ações do Ministério Público bloqueando a licitação, disputas políticas na Câmara pondo em xeque a prioridade dada à obra, outro estudo (desta vez de um consultor do Senado) confirmando as conclusões de Eduardo Fernandez e até boatos de que a base do governo era contra o projeto — isolando a presidente recém-eleita Dilma Rousseff, entusiasta do trem desde que era ministra da Casa Civil — jogaram a concorrência em um lamaçal. O episódio crucial foi encenado no começo de julho, quando o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, recebeu uma ordem de Dilma. A presidente foi dura: chamou o ministério comandado pelo Partido da República (PR) de “descontrolado” e exigiu que o ministro pusesse fim em uma era negra da pasta que, segundo edição da revista Veja que circulou em 2 de julho de 2011, cobrava “um pedágio de 4% sobre o valor dos pagamentos das empreiteiras”. Propina.
A espada de Nascimento decapitou as mais altas cabeças do ministério naquele mesmo dia, entre elas a do homem que há quase uma década reinava encastelado na Valec: Juquinha. Além dele, cairiam todos os membros da cúpula do Ministério dos Transportes, derrubados pelas denúncias. Três dias depois, o próprio ministro pediu demissão.
No dia 11 de julho, após a semana considerada de “faxina” no ministério, membros do governo roíam as unhas nos salões da Bovespa, centro de São Paulo. O relógio bateu 14h em ponto. Era o horário limite para as apresentação de propostas para o primeiro leilão do trem-bala.
Ninguém apareceu.
De joia do PAC, o trem passou à colônia de moscas.
A Italplan continuava atuando nos bastidores mesmo após o fiasco. Vendo seu trabalho desmoralizado e com poucas chances de ser levado ao canteiro de obras, a companhia imprimiu uma fatura e mandou entregar na Valec, na esperança de receber pelos anos de parceria com a estatal. O valor não havia sido combinado previamente, e a Italplan preencheu o cheque como quis — pediu 261,7 milhões de euros ao Tesouro.
Enquanto esperavam, seus diretores evitavam a vida pública, buscando um acordo com a Valec para receber o que julgavam o custo do trabalho que tiveram no Brasil. A estatal não efetuou o depósito, e não se falou mais nos italianos até o começo de 2012, quando a Embaixada Brasileira em Roma foi surpreendida por uma notificação da Justiça local.
Na província de Arezzo, um juiz da comarca de Montevarchi — cidade de 22 mil habitantes no interior da Toscana, vizinha à sede da Italplan — determinava o congelamento das contas da embaixada no Banco do Brasil para pagamento de uma parcela de 15,7 milhões de euros à Italplan.
Outras decisões judiciais, da mesma natureza, bloquearam igualmente as contas dos demais postos do Brasil na Itália: consulado-geral em Roma, representação permanente junto à FAO e consulado-geral em Milão. A decisão estremeceu o Palazzo Pamphilj, sede diplomática brasileira na capital italiana — ironicamente, um prédio adquirido em troca de café, assim como os trens húngaros dos anos 1970.
A disputa judicial levou Ruy Nogueira, secretário-geral do Itamaraty, a Roma. Nogueira é tido como um dos melhores negociadores do país. Na mala, levou argumentos da Advocacia Geral da União sobre erros processuais. Um deles: o Brasil havia sido indevidamente citado. Outro, mais grave: o juiz da província de Arezzo não teria competência jurídica para legislar sobre bens extraterritoriais como embaixadas e consulados. As contas do Brasil na Itália são protegidas por convenções claras sobre imunidade diplomática. O processo era, no mínimo, descuidado. A negociação avançou durante dois dias, entre 14 e 15 de março de 2012, durante encontros de Ruy Nogueira com o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália, Giulio Terzi, e com o então secretário-geral da chancelaria italiana, Giampiero Massolo. As reuniões ocorreram na sede do ministério de Negócios Estrangeiros da Itália, em Roma. Ao fim, a Italplan não colocou as mãos no dinheiro.[...]
[...]Em 19 de dezembro de 2012, com o projeto do trem-bala enguiçado há um ano e meio, Dilma tirou das mãos da Valec a tarefa de executar a ferrovia, anulando o trecho do decreto presidencial de Lula que dava à estatal a missão de “promover os estudos para implantação de Trens de Alta Velocidade”. A obra foi direcionada a outro órgão ligado ao Ministério dos Transportes, a Empresa de Planejamento e Logística S.A (EPL). A Valec, chacoalhada por denúncias de corrupção e por uma licitação fracassada em sua principal missão, estava formalmente afastada do trem-bala.
Entre 2004 e 2014, a estatal custou aos cofres públicos brasileiros — entre despesas com “pessoal, custeio, investimentos e inversões financeiras” — quase R$ 14 bilhões. Durante as investigações da operação Trem Pagador, a mesma que prendeu Juquinha, a Polícia Federal estimou que até R$ 1 bilhão desse orçamento pode ter sido desviado somente em uma das obras administradas pela Valec, a ferrovia Norte-Sul. O processo ainda aguarda julgamento, e Juquinha se defende dele negando todas as acusações.
No Brasil, a briga judicial do governo com a Italplan terminou no dia 1º de fevereiro de 2013, quando o presidente do Superior Tribunal de Justiça do Brasil, Felix Fischer, negou o pagamento aos italianos alegando “ofensa à ordem pública e à soberania nacional”. Em sua decisão, Fischer disse que a Italplan não anexou qualquer tipo de contrato que comprovasse uma ligação formal com a Valec.
A Italplan cometera um erro básico no processo? Simplesmente esquecera de anexar o contrato, único instrumento que lhe daria credibilidade no litígio de 261,7 milhões de euros?[...]
[...]A Valec e a cúpula do Ministério dos Transportes jamais se preocuparam em saber quem eram os diretores à frente da Italplan, sobretudo Moreno Gori? Nunca exigiram da Italplan comprovação dos serviços que a empresa diz ter prestado para as ferrovias italianas? Por que ignoraram por tanto tempo o relatório de Eduardo Fernandez, um documento que colocava muitas dúvidas sobre a viabilidade do projeto? Por que não adequaram o projeto às ressalvas do Tribunal de Contas da União? Por que, apesar de tudo isso, a obra foi confirmada por Lula e Dilma para a Copa do Mundo diversas vezes, mesmo quando nem o mais otimista dos estudos previa prazos tão curtos para a inauguração? Como Valec e Italplan mantiveram uma relação por tantos anos sem assinar um contrato determinando parâmetros triviais, como preço dos serviços? Se esse contrato existe — e tudo indica que não — ele deve estar nas mãos da Italplan. A empresa, no entanto, não se dispôs a enviá-lo a mim.
As respostas podem passar pelas dificuldades de comunicação entre os muitos atores da máquina pública brasileira, pela carência de pessoal capaz de dar atenção aos sinais vermelhos que piscaram ao longo do caminho, pelo desconhecimento técnico dos políticos encarregados de viabilizar a obra e pelo entusiasmo quase irracional de realizar um projeto magnânimo para apresentar ao mundo durante a Copa.
E podem passar, é claro, por caminhos mais tortuosos.
Publicamente, nenhum inquérito foi aberto sobre o trem-bala brasileiro.