A culpa não foi do Waze
Enviado: 24 Out 2015 14:41
A culpa não foi do Waze
Ao responsabilizar o aplicativo de mapas por levar usuários para áreas perigosas, tiramos o foco dos verdadeiros culpados: o Estado e os criminosos
A tecnologia passa despercebida na maior parte do tempo. Não pensamos nela quando viramos a chave do carro ou ligamos o celular. Mas lembramos quando ela não funciona da forma esperada. A morte da jornalista Regina Múrmura, de 70 anos, no dia 3 de outubro, é um exemplo trágico do excesso de confiança que depositamos na tecnologia. Regina estava a caminho de uma pizzaria localizada numa avenida de Niterói. Estava com o marido, Francisco. Ao digitar o endereço do local no aplicativo de mapas Waze, o casal foi levado por engano para uma rua com o mesmo nome, na favela do Caramujo. Foram recebidos a tiros por um grupo de criminosos. Regina foi atingida e morreu no hospital. A tragédia repercutiu na imprensa internacional, que aproveitou para alertar sobre a falta de segurança para as Olimpíadas de 2016. A rede americana CNN destacou que 1,4 milhão de pessoas vivem em favelas da cidade e que, apesar dos esforços do Estado em pacificá-las, muitas delas são controladas por traficantes. Em meio às manchetes, destacou-se a do jornal francês Le Point: “Quando um erro de GPS conduz à morte”.
O caso de Regina não foi o primeiro envolvendo rotas traçadas por GPS em 2015. Em agosto, a atriz Fabiana Karla também teve o carro atingido por tiros na mesma favela enquanto era guiada pelo Waze. Em março, os atores Tadeu Aguiar e Sérgio Menezes foram assaltados no Morro do Chapadão, no Rio de Janeiro, depois de usar o aplicativo para tentar fugir do trânsito.
Para muita gente, o Waze teve uma parcela de culpa na tragédia que matou Regina. O aplicativo, criado em Israel em 2007 e comprado pelo Google em 2013, tem uma rede social própria. Uma camada de interação humana informa em tempo real onde há trânsito, chuva, buracos na pista, acidentes e radares. Ainda conta com editores voluntários que corrigem problemas pontuais. Depois de analisar todas essas informações, o aplicativo oferece a rota mais rápida para o destino. Um dos recursos mais polêmicos do Waze é o alerta de policiais. É possível dizer até se estão visíveis ou escondidos. Além de atrapalhar a fiscalização de blitzes, como a da Lei Seca, a informação sobre a localização pode ajudar criminosos a armar tocaias para policiais. Para os críticos, ao não usar todo esse poder humano para alertar usuários sobre zonas de risco, o Waze estaria negligenciando ajuda a seus usuários. Se o aplicativo pode informar onde estão os policiais, por que não diz onde estão os bandidos?
Procurada por ÉPOCA, a empresa não quis dar entrevista. Disse, em nota, que “infelizmente é difícil impedir que motoristas naveguem para uma região perigosa se for o destino selecionado, pois pessoas que moram nessas áreas precisam chegar em casa”. Também anunciou que se reuniria com autoridades do Rio de Janeiro para obter conhecimento que possa ser aplicado na identificação de rotas que têm maior risco e, ao mesmo tempo, manter o serviço aberto a todos. Para Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia Social (ITS) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é preciso ter cautela na responsabilização do Waze. Ele defende que a ferramenta tenha um sistema que alerte sobre áreas de risco, ainda que pessoas que morem nessas regiões eventualmente tenham dificuldades em usar o serviço. “Essa camada de interação humana criada pelo Waze oferece um efeito colateral semelhante ao de qualquer rede social que dependa de conteúdo postado por terceiros”, afirma. “Mas a experiência da internet mostra que o melhor caminho para ter a informação mais segura é oferecer a maior quantidade de ferramentas para a colaboração.” Para Affonso, aplicativos como o Waze funcionam tão bem e são tão úteis que acabamos depositando neles uma confiança excessiva. Não podemos nos esquecer, porém, dos problemas que afetam nossas cidades.
Jogar a responsabilidade na tecnologia e concentrar a discussão em torno de funções presentes ou possíveis no Waze é um desvio perigoso do debate. Mais objetivo do que exigir melhorias no aplicativo seria cobrar os responsáveis pela falta de segurança das cidades brasileiras, um problema crônico que antecede o surgimento do GPS, da internet e dos celulares. Um balanço realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na semana passada, mostra que em 2014 foram registradas 58.559 mortes violentas intencionais, uma média de sete a cada hora ou 160 óbitos por dia. A culpa é do Waze ou dos traficantes que fizeram os disparos? Ou do Estado, que falha em oferecer segurança à população? Ao permitir interação e a autorregulação em tempo real de milhões de usuários, o Waze revela-se um dos melhores exemplos de como a tecnologia pode ser democrática. O assassinato de Regina só evidencia que o que não é democrático no Brasil são nossas cidades, que têm áreas dominadas pelo crime organizado. São os bandidos que decidem quem pode ou não pode passar por ali e punem com violência quem lhes desobedece.
Fonte: http://epoca.globo.com/vida/experiencia ... -waze.html" onclick="window.open(this.href);return false;
Ao responsabilizar o aplicativo de mapas por levar usuários para áreas perigosas, tiramos o foco dos verdadeiros culpados: o Estado e os criminosos
A tecnologia passa despercebida na maior parte do tempo. Não pensamos nela quando viramos a chave do carro ou ligamos o celular. Mas lembramos quando ela não funciona da forma esperada. A morte da jornalista Regina Múrmura, de 70 anos, no dia 3 de outubro, é um exemplo trágico do excesso de confiança que depositamos na tecnologia. Regina estava a caminho de uma pizzaria localizada numa avenida de Niterói. Estava com o marido, Francisco. Ao digitar o endereço do local no aplicativo de mapas Waze, o casal foi levado por engano para uma rua com o mesmo nome, na favela do Caramujo. Foram recebidos a tiros por um grupo de criminosos. Regina foi atingida e morreu no hospital. A tragédia repercutiu na imprensa internacional, que aproveitou para alertar sobre a falta de segurança para as Olimpíadas de 2016. A rede americana CNN destacou que 1,4 milhão de pessoas vivem em favelas da cidade e que, apesar dos esforços do Estado em pacificá-las, muitas delas são controladas por traficantes. Em meio às manchetes, destacou-se a do jornal francês Le Point: “Quando um erro de GPS conduz à morte”.
O caso de Regina não foi o primeiro envolvendo rotas traçadas por GPS em 2015. Em agosto, a atriz Fabiana Karla também teve o carro atingido por tiros na mesma favela enquanto era guiada pelo Waze. Em março, os atores Tadeu Aguiar e Sérgio Menezes foram assaltados no Morro do Chapadão, no Rio de Janeiro, depois de usar o aplicativo para tentar fugir do trânsito.
Para muita gente, o Waze teve uma parcela de culpa na tragédia que matou Regina. O aplicativo, criado em Israel em 2007 e comprado pelo Google em 2013, tem uma rede social própria. Uma camada de interação humana informa em tempo real onde há trânsito, chuva, buracos na pista, acidentes e radares. Ainda conta com editores voluntários que corrigem problemas pontuais. Depois de analisar todas essas informações, o aplicativo oferece a rota mais rápida para o destino. Um dos recursos mais polêmicos do Waze é o alerta de policiais. É possível dizer até se estão visíveis ou escondidos. Além de atrapalhar a fiscalização de blitzes, como a da Lei Seca, a informação sobre a localização pode ajudar criminosos a armar tocaias para policiais. Para os críticos, ao não usar todo esse poder humano para alertar usuários sobre zonas de risco, o Waze estaria negligenciando ajuda a seus usuários. Se o aplicativo pode informar onde estão os policiais, por que não diz onde estão os bandidos?
Procurada por ÉPOCA, a empresa não quis dar entrevista. Disse, em nota, que “infelizmente é difícil impedir que motoristas naveguem para uma região perigosa se for o destino selecionado, pois pessoas que moram nessas áreas precisam chegar em casa”. Também anunciou que se reuniria com autoridades do Rio de Janeiro para obter conhecimento que possa ser aplicado na identificação de rotas que têm maior risco e, ao mesmo tempo, manter o serviço aberto a todos. Para Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia Social (ITS) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é preciso ter cautela na responsabilização do Waze. Ele defende que a ferramenta tenha um sistema que alerte sobre áreas de risco, ainda que pessoas que morem nessas regiões eventualmente tenham dificuldades em usar o serviço. “Essa camada de interação humana criada pelo Waze oferece um efeito colateral semelhante ao de qualquer rede social que dependa de conteúdo postado por terceiros”, afirma. “Mas a experiência da internet mostra que o melhor caminho para ter a informação mais segura é oferecer a maior quantidade de ferramentas para a colaboração.” Para Affonso, aplicativos como o Waze funcionam tão bem e são tão úteis que acabamos depositando neles uma confiança excessiva. Não podemos nos esquecer, porém, dos problemas que afetam nossas cidades.
Jogar a responsabilidade na tecnologia e concentrar a discussão em torno de funções presentes ou possíveis no Waze é um desvio perigoso do debate. Mais objetivo do que exigir melhorias no aplicativo seria cobrar os responsáveis pela falta de segurança das cidades brasileiras, um problema crônico que antecede o surgimento do GPS, da internet e dos celulares. Um balanço realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na semana passada, mostra que em 2014 foram registradas 58.559 mortes violentas intencionais, uma média de sete a cada hora ou 160 óbitos por dia. A culpa é do Waze ou dos traficantes que fizeram os disparos? Ou do Estado, que falha em oferecer segurança à população? Ao permitir interação e a autorregulação em tempo real de milhões de usuários, o Waze revela-se um dos melhores exemplos de como a tecnologia pode ser democrática. O assassinato de Regina só evidencia que o que não é democrático no Brasil são nossas cidades, que têm áreas dominadas pelo crime organizado. São os bandidos que decidem quem pode ou não pode passar por ali e punem com violência quem lhes desobedece.
Fonte: http://epoca.globo.com/vida/experiencia ... -waze.html" onclick="window.open(this.href);return false;